24 junho 2020

O manifesto “old school”: como treinar Jiu-Jitsu ao estilo samurai, com mais adrenalina e menos firulas

José Mario Sperry x Roberto Roleta em 1998. Foto: Ricardo Azoury

Para você que quer melhorar hoje o seu estilo no Jiu-Jitsu, seguindo as dicas dos cascas-grossas mais experientes do mundo da arte suave, destacamos algumas lições  inspiradas na doutrina que defende um Jiu-Jitsu mais comprometido com o combate real. Uma arte finalizadora, sem firulas, de “essência samurai”, entre outras características que podem instigar a sua evolução como lutador.

Confira abaixo as dicas, retiradas das páginas da GRACIEMAG número #225 e assine agora para ter acesso a conteúdos de qualidade como este.

1. COMPROMISSO COM O COMBATE REAL

Na guerra, quando um samurai japonês perdia a espada e se via obrigado a um combate corpo a corpo contra o inimigo, ele dificilmente pensaria em manobras do tipo berimbolo para lidar com o enfrentamento. Qualquer ação que o deixasse demasiadamente exposto a um ataque do oponente seria fatal. Morte imediata. Fim. É daí que nascem as estratégias de ataque reto e objetivo da versão old school de nossa arte marcial.

Uma filosofia de não dar espaços, de liquidar rapidamente o problema. Um jogo extremamente sério e sem firulas. Adaptando essa “filosofia do samurai” aos tempos de hoje, já que estamos em pleno século 21, uma época em que o Jiu-Jitsu é praticado majoritariamente de forma esportiva e educativa, a doutrina old school e seus apóstolos tentam evitar que a modernidade se desprenda totalmente da essência marcial da arte suave. A “fonte” não pode ser esquecida jamais. Uma questão de preservação de “quem somos” e “deonde viemos”.

Não se trata obviamente de um ataque cego às inovações e à criatividade das novas gerações. Claro que não! O que se quer é, dentro do bom senso, preservar nossas raízes. Por isso, recomenda-se usar as noções de defesa pessoal para balizar a criatividade e a inventividade técnica dos novos lutadores mundo afora. “Eu utilizaria essa técnica numa situação de combate real contra um adversário extremamente perigoso?” Esta é uma pergunta para você fazer a si mesmo. Uma questão de autoconhecimento e autocrítica. Você mesmo terá o discernimento e o livre-arbítrio de se especializar em tal técnica inventiva ou não. Assim, a arte será modernizada ao mesmo tempo em que conservaremos o legado de nossos ancestrais.

2. CULTO AO TREINO DURO

Old school até a alma, o grande campeão de Jiu-Jitsu José Mario Sperry, hoje à frente do Grand Slam de Jiu-Jitsu organizado pela UAEJJF, observa uma falha muito recorrente no comportamento de praticantes de Jiu-Jitsu em academias mundo afora. “Essa mania de ‘escolher treinos’ é uma verdadeira praga. Vejo muita gente se negando a rolar com adversários mais pesados ou mais bem preparados técnica e fisicamente. Não me permito isso hoje, que rondo os 50 anos, muito menos na época em que eu era um garoto. Se quer pegar leve que vá fazer hidroginástica”, brinca Zé Mario.

Claro, existem limites e periodizações no treinamento de Jiu-Jitsu. Ir até o limite físico todos os dias não é proveitoso e tende a levar um praticante ao overtraining e às lesões. Porém, se você só se submete a ‘treinos fáceis’, você não evolui. Fica estagnado. Sem contar que não condiciona a sua mente e o seu coração a situações de adversidade. E, como bem sabemos, um dos grandes benefícios da arte suave é justamente o condicionamento do praticante a não se apavorar nos momentos de aperto. O que vale tanto para os treinos e competições, como também para a vida.

Os correligionários da causa old school querem evitar que nossa arte marcial se contamine por uma perspectiva superficial e hedonista de “treinamento para o bem-estar”, muito recorrente no universo fitness. A popular “aulinha para madame”. Com todo o respeito às madames, as atividades fáceis e leves jamais poderão ser o objetivo de quem veste o kimono e entra num dojô. Falaremos mais sobre isso no próximo tópico.

3. PUJANÇA FÍSICA NÃO É ABDOME TANQUINHO

“Lembro que, quando eu cansava num combate, eu ficava feliz. Afinal, se eu estava cansado, o adversário só poderia estar completamente morto. Eu tinha total confiança no meu vigor físico”, diz Zé Mario, cuja rotina de malhação nunca teve como objetivo modelar o corpo. Hoje em dia, no entanto, é recorrente observarmos muitos praticantes preocupados em fazer pose sem camisa para o espelho e postar fotos contraindo os músculos no Instagram. Trata-se de uma distorção total do culto à saúde do corpo de um guerreiro da dinastia old school. Nossos ancestrais ensinavam que o corpo não deve ser cultuado como uma “obra estética”, mas sim como uma “máquina de combate”. Para isso você deve ser muito cuidadoso com sua alimentação (o combustível), com a malhação cotidiana (manutenção, blindagem e turbinagem) e, sobretudo, com a dinâmica dos treinos duros com kimono (o manejo efetivo da máquina, além do estímulo à capacitação e resistência do motor).

“Não se trata de querer ser halterofilista ou posar de fortão na praia. A ideia é unir força, gás e técnica, daí a necessidade dos treinos duros e constantes, articulados com uma malhação casca-grossa. É a vontade de impor o ritmo, de quebrar o adversário no giro, de fazer força no momento certo que leva o praticante a um estágio superior”, diz Zé Mario.

Mais uma vez vale lembrar que o Jiu-Jitsu é marcial e não um desses modismos fitness para emagrecimento rápido. Não estamos de frente para o espelho, estamos dentro da arena. Não é hedonismo, mas sim, como diria Wallid Ismail em tom de provocação, “tempo ruim o tempo todo”. Desenvolva em você, por exemplo, a capacidade de treinar cansando e administrar a dor. Use a malhação como uma aliada à sua trajetória no Jiu-Jitsu e não para alimentar a sua vaidade estética. Oss!

4. O BÁSICO QUE FUNCIONA

Muitos praticantes da nova geração discriminam golpes básicos, de mecânica extremamente simples, pelo fato de serem técnicas ensinadas para faixas-brancas. Por essa lógica, os olhos dos lutadores só deveriam brilhar para golpes complexos, com dinâmicas super elaboradas. Talvez seja por isso que algumas posições clássicas do Jiu-Jistu, que fazem parte da cartilha para iniciantes, estejam sumindo das academias e dos grandes campeonatos. Um exemplo muito oportuno é o estrangulamento relógio, um dos golpes prediletos de Zé Mario (demonstrado pelo craque nesta reportagem).

Para a doutrina old school, quanto mais simples for o golpe, melhor. Não precisa ser nada espalhafatoso e avançado para ser tido como eficiente. “Eu me destaquei no Mundial de Jiu-Jitsu e no ADCC trabalhando apenas com o feijão-com-arroz. Minhas técnicas nunca foram muito vistosas, eu só fazia o básico mesmo. Porém, eu fazia esse básico muitíssimo bem. Eu era um lenhador que havia passado anos afiando um meu machado. Por exemplo: a passagem de guarda que utilizo até hoje eu aprendi com o Otavio Peixotinho quando eu ainda era faixa-azul”, analisa Zé Mario.

5. DOUTRINA CASCA-GROSSA

Às vezes, ouvimos um praticante de Jiu-Jitsu dizer que não foi à academia porque estava fazendo muito frio no dia ou chovia torrencialmente. São desculpas intoleráveis dentro da filosofia old school. Só para a gente trabalhar com “parâmetros de disposição”, a maioria dos professores de Jiu-Jitsu old school é de uma época anterior ao profissionalismo do MMA. Naquele tempo, o nome dos desafios entre artes marciais distintas se chamava vale-tudo. Lutadores subiam ao ringue sem patrocínio, vislumbrando uma bolsa baixíssima se comparada às de hoje (alguns participavam de graça). Lutavam sem limites de peso e de tempo. Muitas vezes disputavam campeonatos de vale-tudo em formato de GP, nos quais podiam fazer mais de três lutas numa mesma noite. Sem luvas!

Se você treina numa academia que de alguma forma valoriza essa época, é preciso ter o mínimo de respeito a esses guerreiros do passado. Claro, não se trata de passar por provações tão tenebrosas. Porém, há um mínimo de atitudes a serem honradas, entre elas a disposição ao treino, a pontualidade, a dedicação, a raça durante os combates, o ímpeto em aprender, a lealdade ao mestre, a persistência e a resistência também. “Academia de Jiu-Jitsu não é fábrica de confetes”, costuma dizer Fabio Gurgel. Apesar do bom-humor das palavras de Gurgel, leve a mensagem a sério. Deixe as desculpas esfarrapadas de lado e simplesmente vá treinar!

6. COMPETIÇÕES, DESAFIOS E ADRENALINA

“Não se aperfeiçoe para competir. Compita para se aperfeiçoar”. Essa é uma máxima comum nas academias de Jiu-Jitsu. Ela ensina que o seu Jiu-Jitsu, querido leitor, tende a evoluir bastante (tanto em aspectos técnicos como também por um ponto de vista emocional) quando praticado dentro da área de luta de um torneio com torcida (contra e a favor), arbitragem rigorosa, e um adversário que muitas vezes provoca medo, aflição e adrenalina. Os seguidores da linhagem old school tendem a se alimentar de adrenalina. Precisam de desafios para viver e encontram nos campeonatos de Jiu-Jitsu o habitat natural perfeito para deixarem a essência guerreira fluir.

Um ótimo exemplo de faixa-preta old school é o campeão mundial BJ Penn. Para o ídolo havaiano, a adrenalina pré-luta é como uma turbulência num avião de passageiros. “Não há nada que você possa fazer, então aproveite a experiência”, opina o havaiano, com bom humor. “Agora que estou mais experiente”, continua BJ, “sinto mais a adrenalina antes das lutas. Só que eu não reajo mais como uma pessoa de vida comum e convencional. Pelo contrário. Eu me aceito mais como lutador. Quando bate a adrenalina, eu simplesmente adoro!”. É assim que os lutadores passam a crescer nas situações de adversidade. É quando passam a gostar daquilo que afugenta a maioria que eles entram em contato direto com a fonte milenar do Jiu-Jitsu.

7. A ARTE DE IMPOR PRESSÃO

Como já falamos no tópico 1, o Jiu-Jitsu old school tem um compromisso estratégico com o combate real. Por essa linha de raciocínio, é natural que o lutador prefira cair por cima do que puxar para a guarda, concorda? É por isso que há uma indisfarçável predisposição a jogar por cima quando analisamos as lutas dos principais defensores da doutrina old school. A cartilha para esses lutadores seria mais ou menos assim: derrubar, passar a guarda, montar e finalizar. Claro, saber fazer guarda é fundamental, o praticante de Jiu-Jitsu deve ser completo tecnicamente, mas numa estratégia de guerra a tendência natural é essa: derrubar, passar, montar e finalizar.

Pois bem. Toda essa experiência em enfrentar a guarda dos adversários transformou os representantes da escola antiga em virtuoses na arte de distribuir o peso de forma implacável, apavorando o incauto que está por baixo. Os expoentes do Jiu-Jitsu old school sabem muito bem usar a gravidade a favor de seu jogo. Gostam de “embrulhar” os adversários, impondo o máximo de desconforto. Zé Mario Sperry tem um bordão que diz: “Jiu-Jitsu não é Socila. Jiu-Jitsu é Dorcila”, diz o craque, parodiando o famoso curso de etiqueta social. Há quem diga que a pressão do ombro do passador sobre o rosto do guardeiro é “pura grosseria”. Quem acredita nisso, além de estar cometendo um grave erro de avaliação, certamente não se graduou numa escola old school.

8. GRADUAÇÃO NO LONGO PRAZO

Uma das grandes críticas feitas pela turma da velha guarda do Jiu-Jitsu incide sobre o curto período de tempo com que certas escolas graduam seus alunos à condição de faixas-pretas. Tema muito polêmico nas redes sociais, a graduação é vista pelos professores de Jiu-Jitsu old school como um processo que requer muito rigor e avaliações. Carlinhos Gracie, líder da Gracie Barra, costuma dizer: “Disciplina e consistência. Devo a esses dois fatores tudo que consegui na minha vida. As coisas nunca aconteceram do dia para a noite, os resultados vieram como consequência de um trabalho de muitos anos. É preciso persistir, e isso é uma coisa difícil de ser ensinada nos dias de hoje, uma época em que a sociedade revela tanta fome de conquistas imediatas.”

O general da Alliance Fabio Gurgel concorda com Carlinhos. Na edição #223, Gurgel declarou: “Na minha opinião, o critério para a faixa-preta engloba vários fatores: a técnica obviamente; o tempo de estrada; o conhecimento da história do Jiu-Jitsu; a frequência às aulas; comportamento exemplar; e a gentileza em relação aos outros. Porém, alguns professores não se preocupam tanto e passam por cima de algumas etapas importantes.”

Gurgel continuou: “Precisamos lembrar sempre que muitas vezes esses que estão tão se graduando hoje vão passar o Jiu-Jitsu adiante. Sem critérios, a graduação vira um telefone sem fio, a mensagem que chega lá na ponta vai ficando muito longe da origem. Hoje, na Alliance, nós temos um sistema de graduação baseado na frequência do aluno. Porém, quando o assunto é a faixa-preta isso passa a ser apenas um pré-requisito, não sendo garantia de absolutamente nada. O aluno precisa completar todos os requisitos, ou fica na marrom – a faixa-preta não é para todos.”

9. LUTE PARA FINALIZAR E NÃO PARA VENCER POR VANTAGENS

Nos campos de batalhas do Japão feudal, não havia árbitros indicando pontos e vantagens no decorrer dos combates. Na luta real corpo a corpo só há uma única opção: a busca por finalização. Portanto, adaptando essa filosofia aos dias de hoje, em que o Jiu-Jitsu enveredou para o âmbito esportivo, os atletas devem valorizar os três tapinhas do oponente.

10. A PERMANENTE CONSAGRAÇÃO DO JIU-JITSU ENTRE AS OUTRAS ARTES MARCIAIS

Antes de o Jiu-Jitsu se consagrar mundialmente, algo que aconteceu nos ringues de vale-tudo na virada do século 20 para 21, havia uma grande preocupação na comunidade da arte suave em se afirmar entre as outras modalidades de luta. Daí o enfrentamento direto em eventos como as primeiras edições do UFC. Hoje essa preocupação já não é tão explícita assim em nossa comunidade, já que a eficiência do Jiu-Jitsu chegou a uma condição de unanimidade. Algo inquestionável. No entanto, para os defensores da escola old school, essa manutenção do Jiu-Jitsu no topo das modalidades de luta parece jamais ter fim.

Na edição #212, por exemplo, o campeão de Jiu-Jitsu Marcinho Feitosa chamou a atenção de nossa equipe de reportagem para um detalhe: “Reparem como a comunidade do Jiu-Jitsu vibra com a ascensão do Ronaldo Jacaré no UFC. Toda vez que ele luta, parece que todos nós batemos no peito e gritamos: ‘Estou te falando, meu irmão, o Jiu-Jitsu ainda é e sempre será a melhor luta para um confronto desarmado, em qualquer situação!’” Quem é old school de verdade entende exatamente o que Marcinho quis dizer. São grandes entusiastas da nossa arte marcial e se orgulham muito disso. Atuam como defensores de uma nobre causa. Formam uma espécie de sociedade não muito secreta, responsável por blindar uma irrefutável verdade ao longo dos tempos: só o Jiu-Jitsu salva.

É triste perceber que, nas competições e até mesmo nas academias, muitos confrontos estão baseados na estratégia de “vitória magra”, aquela que acontece por uma vantagem, sem a demonstração da devida combatividade e a busca por uma torção ou por um estrangulamento. Pontos e vantagens têm um papel importante nos campeonatos. São essas pontuações que permitem o desempate de um combate. Porém, os lutadores não devem se ater meramente à vitória no placar. Devemos buscar a vitória por excelência. A vitória por finalização.



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