11 setembro 2020

Xeque faixa-preta: O príncipe árabe que respira Jiu-Jitsu

Rafael Haubert, Zé Mario Sperry e Davi Ramos amarraram a faixa-preta no xeque Tariq. Foto: Carlos Arthur Jr./GRACIEMAG

Xeque de Sharjah, um dos Emirados Árabes Unidos, Tarik Alqassimi travou o primeiro contato com o Jiu-Jitsu em 1996, quando entrou numa loja de vídeos na Inglaterra e escolheu por curiosidade uma fita do UFC 1. Pouco depois, assistiu aos torneios sem kimono do ADCC, mas ainda assim o flerte não se transformou em paixão.

Somente em 2009, quando a arte suave ganhou corações e mentes em seu país, Tarik resolveu mergulhar de cabeça na arte suave. Ele estava com 38 anos, mas passou a treinar com a alegria de um menino. Tornou-se faixa-preta, proprietário do Team Nogueira Dubai e atualmente, aos 44 anos, é um dos maiores entusiastas do Jiu-Jitsu na região, aonde aterrissam dezenas de campeões mundiais para treinar com ele e ensiná-lo alguns de seus truques e táticas de luta.

Nesta entrevista a Luca Atalla, Tarik conta como um nobre árabe tornou-se um professor estudioso e um competidor apaixonado, e como o Jiu-Jitsu que faz questão de praticar com disciplina, ao menos cinco vezes por semana, o ajuda em seu dia a dia.

GRACIEMAG: O que lembra do seu primeiro treininho?

TARIK ALQASSIMI: Bem, eu havia sofrido um acidente de carro sério e machucado a perna, e por isso comecei a fazer musculação diariamente. As horas na academia me levaram a treinar muay thai. Em 2009, voltei da Europa e procurei algum local nos Emirados para praticar esportes de combate. Eu só queria mesmo era perder peso. Foi quando encontrei o Jiu-Jitsu, no clube em Abu Dhabi. Ali caí de amores pelo esporte ao primeiro contato. Desde a primeira vez que treinei, percebi que é um esporte que exige inteligência, flexibilidade, habilidade física em geral, força e técnica. É um confronto de habilidades, mas é um jogo. E um jogo inteligente, o que me fez me apaixonar por ele. Rapidamente tornou-se mais que um hobby e virou paixão. O Jiu-Jitsu é como um jogo de xadrez, e proporciona um aprendizado sem fim – você está sempre evoluindo ou encontrando novos caminhos, é um desenvolvimento constante do seu jogo. E quanto mais você treina e compete, mais você descobre que tem de aprender mais. É um esporte desafiador, mentalmente desafiador.

Como você tomou gosto pelas competições de Jiu-Jitsu?

Quando eu era faixa-azul fui disputar o Europeu da IBJJF, em Portugal. Lutei três vezes, perdi na semifinal e voltei com a medalha de bronze. Na academia eu sentia meu jogo evoluir constantemente, mas o teste verdadeiro para o desenvolvimento do praticante de Jiu-Jitsu, ou do praticante de qualquer modalidade, é a competição. Por isso me encorajei a disputar o Europeu. Foi engraçado, pois na minha carteira de identidade que usei na competição estava escrito “membro da família real”, e um repórter de GRACIEMAG viu a carteira. Quando fui pegar minha medalha, já tinha recebido um monte de mensagens no meu celular. Minha foto estava nas redes sociais da GRACIEMAG, um xeque dos Emirados que havia medalhado no Europeu. Fiquei satisfeito, ninguém sabia que eu estava lá competindo, e os meus oponentes que não me conheciam deram 100% para me finalizar. Não conheciam meu jogo, meu nome ou minhas origens, e vieram com tudo, sem esconder nada. Foi minha primeira luta. No meu segundo Europeu, estava treinando de faixa-roxa e na véspera meu professor me graduou faixa-marrom. Foi apavorante, você desconfia se está à altura do desafio, e viajei e ganhei a medalha de ouro como faixa-marrom.

O que costuma aprender em cada competição?

Lutar é se testar. Competir não é sobre vitórias ou derrotas, e sim sobre como atingir seu potencial ao máximo. A cada erro cometido e aprendido, você descobre outro num campeonato futuro. Nos treinos, os colegas conhecem meu jogo e evitam meus pontos fortes, assim como eu evito as habilidades deles. Quando você enfrenta um novo parceiro, você entende sobre si mesmo e sobre seu Jiu-Jitsu, e descobre novas armadilhas e novas soluções. Competir me dá o potencial para entender exatamente como eu posso desenvolver meu jogo mais um pouco. Quais são as falhas do meu jogo? Num campeonato o oponente te mostra na hora. Lutei no Brasil o Internacional de Masters, no clássico ginásio do Tijuca, e perdi a final nas vantagens. Mas a surpresa maior estava por vir, quando recebi no pódio, do Zé Mario, minha faixa-preta. São emoções e conquistas que somente os campeonatos nos deixam.

Você custou a vestir o kimono e de fato experimentar a arte suave. O que lembra daquele seu primeiro contato com o Jiu-Jitsu, em 1996?

Como você lembra, não havia internet e o UFC ainda não era muito popular, então aluguei aquela fita sem saber muito o que esperar. E vi pela primeira vez a superioridade do Jiu-Jitsu no MMA. E foi, para mim, uma revelação, abri os olhos para o esporte ali. Mas à época não havia muitas academias e escolas de Jiu-Jitsu em Londres, onde eu estudava. Acho que aceitei então que se tratava de uma grande modalidade de arte marcial, mas não tive a oportunidade de treiná-la.

O que você sentiu ao assistir aos torneios sem kimono do ADCC em seu país, a partir de 1998?

Me parecia mais um torneio de wrestling, e eu mal fiz o link do Jiu-Jitsu que o Royce Gracie usara com o ADCC. Lembro de ter achado divertido, mas assistir ao Jiu-Jitsu sem conhecê-lo é como ouvir uma língua estrangeira. Mesmo que você goste de como soa, você não entende.

Como foram os primeiros contatos com os astros brasileiros do esporte?

Desde que comecei a treinar, eu rolava com os faixas-pretas que estavam em Abu Dhabi, mas queria mais variedade de treino, e passei a viajar para ver como o esporte era em outros países. Fui ao Brasil quatro vezes para treinar, conheci os irmãos Rodrigo Minotauro e Rogério Minotouro, treinava com Zé Mario Sperry, visitei a academia do Carlson. Já estava fazendo boxe para melhorar minha parte cardiorrespiratória, quando conheci a Team Nogueira e gostei das instalações, com variedade de aulas. Decidi abrir uma filial em Dubai para receber os amigos e lutadores de ponta confortavelmente. Nessa época já tinha aberto minha academia, mas o tatame era menor.

Como conseguiu dividir as responsabilidades, o treino físico, o trabalho e o Jiu-Jitsu?

Decidi uma coisa para minha vida, que depois das 17h não é mais hora de pensar em trabalho. Trabalho duro desde cedinho de manhã. Mas às 17h01, não deixo ninguém entrar no meu escritório para falar de trabalho. A partir dali, é hora de encontrar os amigos e ir treinar, cinco vezes por semana. O Jiu-Jitsu é religiosamente importante, e não permito que nada atrapalhe aquele momento do meu dia. Claro que um dia ou outro você precisa se ausentar para alguma responsabilidade, mas com disciplina você é capaz de compensar aquele dia perdido.

Algum aprendizado curioso que você teve nesse contato com tantos craques do Jiu-Jitsu, como Marcus Buchecha, Rodolfo Vieira, Rubens Cobrinha e os Nogueira, entre tantos outros?

São tantos campeões que treinam constantemente comigo, que não posso deixar de citar alguns deles. Além dos citados, como não agradecer a Roger Gracie, Léo Vieira, Roberto Cyborg, Ricardo Evangelista, Igor Silva, Lucio Lagarto, Braulio Estima…? Olha, algo interessante que aprendi é que todos os campeões mundiais que conheci até hoje são pessoas inteligentes. Não cruzei com nenhum campeão que seja idiota, até agora. O que é encorajador pois reforça minha compreensão sobre o esporte, ou seja, que o Jiu-Jitsu deve ser executado com o máximo de inteligência. Quanto mais eu interajo com esses craques, mais feliz eu fico de convidá-los novamente.

A comunidade do Jiu-Jitsu tem essa interação única, não é?

Exato. Se eu jogo futebol, é praticamente impossível convidar o Cristiano Ronaldo ou o Messi para trocar uma ideia por horas, ou bater uma bola e trocar ideias sobre a técnica dos chutes ou visão de jogo. Se sou boxeador, seria difícil treinar com os Klitschko ou com o Floyd Mayweather. No Jiu-Jitsu, conseguimos convidar os cinco melhores do mundo do ranking mundial e eles ficam felizes em vir, são generosos em compartilhar o que sabem, a falar de táticas e ainda rolam com você, apontando suas falhas. Um praticante de Jiu-Jitsu tem essa chance de treinar com os melhores finalizadores do mundo e ir para casa depois sem um arranhão, pois eles podem vencer sem vir como loucos, sem machucar seu braço. E você vê tudo de perto, como eles controlam, como eles engatilham a finalização, como eles armam a passagem de guarda. Só no Jiu-Jitsu você tem essa chance. Outro dia numa competição ocorreu outro fato curioso: eu estava lutando e quatro campeões de escuderias diferentes estavam lá me apoiando, me sugerindo o que fazer, cada um de um lado da área de lutas. Isso também seria impossível se eu fosse um pugilista, inimaginável certo?

Estamos numa era da informação onde todos compartilham conhecimento, onde o iniciante pode aprender diretamente com os maiores experts com a ajuda da internet. No Jiu-Jitsu isso também parece estar acontecendo de modo inédito…

Sim, é o que me parece. Porque o pessoal da velha guarda do Jiu-Jitsu, antigamente, só exibia suas técnicas nos grandes campeonatos. Os treinos eram fechados, ninguém ia mostrar suas cartas para os adversários. E só saberíamos o que eles iam preparar para a revanche no ano seguinte. Hoje a internet é importante para divulgar a técnica do professor, para divulgar seus seminários, e todos compartilham o que sabem. Um lutador posta um vídeo com uma variação de um golpe na sede da Team Nogueira em Dubai e o jovem praticante no Brasil pode aprender em poucos segundos. E isso tem ajudado o Jiu-Jitsu a crescer e se expandir pelo mundo todo.

Como você enxerga o projeto que levou o Jiu-Jitsu a ser ensinado em quase todas as escolas dos Emirados Árabes?

É uma ideia sensacional e que está tendo resultados incríveis. Você vê, o programa começou a ficar sério ali por 2009, quando o príncipe de Abu Dhabi Mohammed bin Zayed Al Nahyan passa a investir seriamente em recrutar faixas-pretas do Brasil e outros países. Hoje vemos 65 mil jovens treinando Jiu-Jitsu em meu país. Eu comecei a treinar com 38 anos, e gostaria de ter tido a chance de me iniciar no Jiu-Jitsu com 15, 16 anos. A família real e o governo do país têm dado essa chance aos nossos jovens. Com o Jiu-Jitsu eles têm fortalecido o caráter e ganhado confiança. E estão evoluindo muito num esporte incrível, já que eles têm a oportunidade de testar suas técnicas em campeonatos internacionais, contra competidores de bom nível vindos de todos os cantos do planeta. Eles demonstram orgulho e vontade de vencerem. Creio que nos próximos anos os Emirados terão uma bela safra de campeões mundiais de Jiu-Jitsu. Fico orgulhoso de ver tudo isso, e admiro essas crianças que competem. Porque eles já agem como faixas-pretas. Agem como verdadeiros campeões.

* Artigo retirado da GRACIEMAG número #243. Para ler mais artigos como este, assine a revista de Jiu-Jitsu mais lida do país!

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